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Conceitos sobre Espiritualidade

O Silêncio de Dakshinamurti

Dakshinamurti é uma forma de Shiva como aquele que destrói o samsara, a vida de sofrimento, através do ensino do autoconhecimento. Em um verso muito famoso, Dakshinamurti é descrito como aquele que ensina o que é completamente livre de limitação através de uma explicação silenciosa – mauna-vyakhya-prakatita-parabrahma-tattvam.

É esse tipo de descrição que confere ao Vedanta o ar místico que na verdade não lhe pertence, porque as pessoas entendem que o ensinamento de Vedanta se dá, literalmente, através do silêncio – seja na meditação, seja na mera presença de um mestre “realizado” ou através do seu toque. E muitos “gurus” se aproveitam dessa ingenuidade, acumulando ashramas e discípulos meramente porque têm a capacidade de ficar calados ou responder perguntas com sorrisos radiantes.

Mas a explicação silenciosa de Dakshinamurti não é tão simples assim. Explicação silenciosa significa uma explicação através da qual algo fica implicado, por trás, digamos assim, das palavras efetivamente ditas.

Se digo que tenho uma casa na praia, imediatamente todos entendem que tenho uma casa perto da praia, e não efetivamente na praia, na areia. O “perto” não foi dito mas, por um senso comum muito óbvio e conhecido pelas pessoas, elas entendem corretamente.

Em Vedanta as palavras são usadas objetivando algo que não pode ser objetivado por ninguém, porque é a própria natureza do sujeito que objetifica tudo. Portanto, nenhuma palavra serve, na medida em que não pode exercer sua função fazer brilhar algum sentido na cabeça do sujeito. Qualquer outra coisa no mundo, por sutil que seja, pode ser objetivada. Mesmo a partícula subatômica recém descoberta, ainda que não possa ser diretamente vista, é inferida por um longo processo de cálculos e presunções, e dela formamos uma ideia. Mas o sujeito, aquele que ilumina essas ideias, que ideia podemos fazer dele? Que palavra pode apontá-lo?

Obviamente, nenhuma. O sujeito, contudo, não precisa ser objetivado, pois é a luz auto-evidente desde a qual tudo mais se torna evidente, se torna um objeto. A cadeira na minha frente não se mostra por si mesma, necessita da luz. A luz não se mostra a si mesma, precisa dos meus olhos. Os meus olhos não se revelam por si mesmos, precisam da mente para formar o pensamento na forma daquilo que os olhos veem. O pensamento não se mostra por si mesmo, não é auto-evidente, precisando do sujeito para evidenciá-lo. Mas o sujeito não precisa de outro sujeito para evidencia-lo, o que seria um absurdo. Ele é, necessariamente, auto-evidente.

O sujeito é a existência auto-evidente. Mas nós supomos que somos outra coisa, atribuindo a essa existência as qualidades do corpo e da mente que, obviamente, são objetos evidenciados por nós. O trabalho de Vedanta é negar esse erro, deixando o que é auto-evidente brilhar por si mesmo, livre dos enganos que cometemos, por ignorância, com relação a essa auto-evidência.

Vedanta não precisa de uma nova palavra, não precisa revelar algo novo, apenas precisa negar uma ignorância que gera a confusão. Para isso, contudo, Vedanta só pode usar palavras, e as palavras que conhecemos, sem que elas realmente, por si mesmas, sirvam. A única saída é a implicação.

A implicação em Vedanta retém o significado básico da palavra dita, mas nega-lhe as limitações normalmente associadas a ela. Assim, Vedanta diz “existência, satyam”, para se referir ao sujeito e, ao mesmo tempo, usa a palavra “ananta, sem limite”, qualificando essa existência. Temos que reter o significado básico de existência, negando-lhe a limitação temporal, espacial e de objeto que normalmente está associada a ela. Pois só entendemos a palavra “existe” com relação a algum objeto, em um dado lugar, em um dado tempo. Satyam não é aqui, entretanto, alguma coisa em algum lugar no tempo. Simplesmente é.

E o que é isso que simplesmente é, sempre, sem qualquer limitação? Vedanta diz “jñanam, conhecimento”. Mas, novamente, jñanam é ananta, livre de qualquer limite. Não pode ser um conhecimento particular, uma ideia ou pensamento, porque isso é limitado. Não é o conhecedor, porque mesmo ele é limitado por ser distinto do objeto conhecido. E muito menos é o objeto conhecido, sempre limitado. Jñanam, conhecimento, aqui, só pode ser aquilo que permeia a tríade conhecedor-conhecimento-conhecido. O que é isso? Vedanta diz, é o “nhe” (jña, em sânscrito), puro conhecimento, ou consciência, sem a qual nenhum dos três existe.

Nem a palavra consciência, nem a palavra existência e nem a palavra ilimitado revelariam por si mesmas isso que Vedanta quer revelar. Mas as três palavras usadas juntas, dentro do método de ensino, produzem um sentido implicado capaz de negar a limitação natural dessas palavras, revelando para o próprio sujeito que entende a sua natureza livre da distinção conhecedor-conhecimento-conhecido. O que sobra depois do entendimento não é uma ideia na cabeça de alguém, mas apenas o silêncio que é a paz e que é a sua natureza auto-evidente. Isto é o “ensinamento através do silêncio”, e nada mais.

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