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Viveka-Jñana: a diferença entre simples conhecimento e discriminação

A escritura de Vedanta se apresenta ao estudante ou praticante espiritual como um meio de conhecimento para o eu, o sujeito. O sujeito é aquele que está, por assim dizer, por trás dos olhos, vendo o que eles mostram; por trás dos ouvidos, escutando o que eles ouvem; por trás do tato, sentindo as texturas e temperaturas que revelam e, assim, igualmente com os outros dois órgãos de percepção, o paladar e o olfato. Por isso, a Kenopanishad define o atma, o eu, como “shrotrasya shrotram – o ouvido do ouvido”, “cakshushah cakshuh – o olho do olho”, e assim por diante.

Mas para que o olho veja, ou melhor, para que eu veja o que o olho vê, é necessário um pensamento, um vrtti. Caso o pensamento na forma do objeto não seja formado na mente, o objeto não é visto, não se torna evidente, mesmo que os olhos estejam bem abertos. É por isso que você pode estar bem na frente de uma pessoa, com os olhos e ouvidos (sem fone de ouvido!) bem abertos, ouvindo-a tagarelar por cinco minutos e, logo depois, confessar constrangido: “Desculpe, mas o que você disse?

Portanto, quando dizemos que vemos o que o olho vê estamos, na verdade, querendo dizer que vemos o pensamento na forma do objeto que o olho viu, e assim se dá igualmente com os outros órgãos de percepção. O sujeito, deste modo, também é aquele que está por trás da mente, evidenciando os pensamentos, que não podem se auto-iluminar. Por isso, a Kenopanishad também define o sujeito como “manaso manah – a mente da mente”.

Assim, dizemos, por exemplo, que os olhos são o meio de conhecimento para formas e cores, mas eles precisam de um sujeito consciente que os opere, que veja o que eles veem; que, na verdade, evidencie ou ilumine o pensamento produzido na mente pelo contato dos olhos com a luz externa refletida pelo objeto. De modo que nada no mundo é auto-evidente – evidente por si mesmo – precisando de um meio apropriado de conhecimento que os ilumine.

Para que as cores sejam reveladas, o meio apropriado a ser aplicado são os olhos, e cada um dos cinco sentidos revelam um universo único, que só eles podem revelar. O conhecimento coletado pelos sentidos são armazenados em um mesmo depósito, na forma de pensamentos, que chamamos mente. Ouvir algo significa evidenciar um pensamento, uma modificação da mente, na forma de um som. Sentir algo significa evidenciar uma modificação mental na forma de certa textura, e assim por diante.

Os próprios meios de conhecimento que, junto com a mente conectada a eles, revelam ou tornam evidentes os seus respectivos objetos, precisam eles mesmos ser revelados ou tornados evidentes por uma outra luz, distinta deles e que a eles não pertence. Essa luz que evidencia a mente com seus sentidos e que, por sua vez, evidenciam o mundo inteiro de objetos é o eu, o sujeito, a consciência, o Atman, para o qual Vedanta se apresenta como o meio de conhecimento apropriado, com autoridade para revelar. Se você quiser conhecer a forma e cor de um objeto no mundo você deve usar os olhos mas, se quiser conhecer a si mesmo, aquele que tudo conhece, você tem que usar Vedanta.

Há aqui um problema muito evidente. Eu, que jogo luz nos meios de conhecimento para que as coisas se iluminem e se mostrem, não preciso de um meio de conhecimento para tornar-me evidente para mim mesmo. Eu sou, evidentemente, auto-evidente. Não preciso que nada nem ninguém me revele, me ilumine para mim mesmo. Se eu lhe perguntar, leitor, se uma mesa está presente na sua frente, você precisa de um tempo, ainda que insignificante, para aplicar o meio de conhecimento apropriado e verificar a presença ou ausência, a existência ou inexistência da mesa. Mas se eu lhe perguntar se você mesmo está presente, se você existe ou não, não é necessário tempo algum, pois não é necessária a aplicação de nenhum meio de conhecimento para me provar ou colocar-me em evidência. Eu sou a evidência! Inclusive a presença da pergunta que me coloca em dúvida, evidenciada por mim mesmo através dos meus ouvidos, seria uma “prova” indubitável da minha existência ou presença, para a qual, no entanto, nenhuma prova é necessária nem faria qualquer sentido, pois seria, afinal, uma prova para quem?

Eu sou, portanto, a única coisa neste vasto universo que não precisa ser evidenciada, conhecida, provada ou iluminada por algum instrumento ou meio de conhecimento, pois sou – pela necessidade da lógica mais fundamental e da experiência imediata mais inegável – auto-evidente, auto-probante, auto-existente. Sou a luz em cujo brilho tudo o mais pode reluzir, pode vir à luz.

De maneira que, já de início e antes de mais nada, a apresentação que Vedanta faz de si mesmo torna-se no mínimo absurda. Como Vedanta pode ser um meio de conhecimento para o Atman, o eu, se eu dispenso a necessidade de ser conhecido ou evidenciado por quaisquer meios, sendo eu mesmo a base auto-evidente imprescindível para que haja toda e qualquer evidência?

De fato, essa é uma questão de extrema pertinência. Como algo poderia pretender revelar-me, o revelador final de tudo que é revelável? Da mesma forma, eu diria, que a luz da lua cheia poderia pretender, imbuída da arrogância que só a ignorância extrema pode dar, iluminar o sol. Vedanta, contudo, ao apresentar-se da maneira que faz, como um meio de conhecimento tão estranhamente peculiar, não quer com isso dizer que irá revelar, mostrar ou tornar evidente algo novo, algo de cuja evidência, talvez por estar escondido ou longínquo no tempo ou no espaço, nunca antes se desconfiou.

Podemos dizer que existe uma diferença entre um conhecimento, que chamaremos aqui de normal, e um conhecimento discriminativo. Um conhecimento normal se dá simplesmente pela revelação, através de um meio de conhecimento válido, de algo nunca antes objetificado, nunca antes visto. Se você, caro leitor, morando no interior remoto do Brasil, nunca viu um canguru e nem sequer ouviu falar da existência de tal coisa, se você quiser conhecê-lo diretamente, não terá que discriminar, que distinguir entre duas coisas já para você presentes. Não, neste caso você terá que ir até um zoológico ou, quem sabe, aproveitando o ensejo, levar a patroa para uma segunda lua-de-mel na Austrália, onde essas criaturas existem, e esperar por lá, no safari, até que o bicho apareça. Vendo o estranho marsupial e provavelmente obtendo do guia turístico certas informações confiáveis, você terá o conhecimento de canguru, ao menos o suficiente para poder dizer para os amigos: “Nunca vi um diacho de bicho mais esquisito, sô!”. Pronto, um novo conhecimento, do qual nem se desconfiava, foi adicionado à lista. Vivendo e aprendendo.

Um conhecimento discriminativo, viveka-jñana, ao contrário, não lhe revela algo que já não esteja presente, evidente, apenas faz com que você discrimine, cognitivamente (sem precisar alterar a experiência) entre atributos que pertencem a duas coisas distintas, mas que são vistos ou experimentados juntos, em uma experiência única.

O exemplo geralmente dado para o conhecimento discriminativo é o de uma bola de ferro incandescente. Um bola de ferro incandescente é uma só coisa, uma só experiência. Ela brilha, é vermelha, quente, redonda e pesa 5 quilos, suponhamos. O que acontecerá aso você nunca tenha visto antes uma esfera de ferro fria ou, por alguma aberração no seu prarabdha-karma, nunca tenha visto fogo. Você concluirá que o que queima, o que machuca e deixa a pele vermelha e irritada, é uma coisa esférica, vermelha e que pesa tantos quilos. A sua experiência de fogo está associada totalmente à experiência da esfera de ferro, de modo que os atributos de uma coisa não se distinguem dos atributos da outra. Você tem a experiência do fogo, sem dúvida, não é ela que lhe falta. Contudo, ainda assim, não podemos dizer que você conheça o que é fogo, porque fogo não tem peso, cor ou forma específica que você atribui à natureza dele. É preciso que você entenda que o calor e a vermelhidão (esta última no caso específico do fogo no ferro) pertencem ao fogo, e a forma esférica e o peso, ao ferro. Para isso, você tem que ver as duas coisas separadas. Só então, tendo discriminado o fogo do ferro, poderemos dizer que você tem o conhecimento de ambos.

De modo análogo, Vedanta não lhe dará uma nova experiência, nem mesmo exatamente um novo conhecimento, porque em qualquer experiência ou conhecimento o eu, Atman, está evidente como a própria natureza da experiência e do conhecimento. O problema é que, por ignorância, isto que estamos chamando de experiência ou conhecimento está associado ao corpo, à mente, às emoções e outros objetos evidenciados, de modo que, mesmo tendo toda a experiência necessária, você não pode dizer que conhece a si mesmo, assim como, no exemplo anteriormente citado, o sujeito, apesar de não faltar-lhe experiência, não podia dizer que conhecia de fato o fogo.

O eu, a experiência básica, a luz auto-evidente e imutável desde a qual tudo mais é evidenciado na sua existência mutável, não possui de maneira alguma os atributos, por exemplo, do corpo, de modo que quando você diz que pesa 120 quilos, que está morrendo, ou que gostaria de ter a pele mais branca, você está sofrendo por pura e simples falta de discriminação, falta de viveka. A consciência, isso em que a palavra eu finalmente encontra um refúgio final e permanente, não tem peso, não vai morrer pois não nasceu em momento algum, e nem possui tons de cores.

A mesma falta de discriminação se dá com relação à mente, às emoções e ao intelecto. A limitação deles tornam-se a minha limitação. Por elas eu sofro e delas busco me livrar, sempre pelos meios errados, porque o problema é falta de conhecimento discriminativo, e não uma falta real a ser preenchida no mundo por algum objeto, pessoa ou situação. O sujeito que já atribui a si as qualidades do corpo, por exemplo, como se fossem seus próprios atributos, não se tornará mais seguro adquirindo outras coisas tão inseguras quanto o que ele considera ele mesmo. As conclusões de insegurança e insatisfação não irão embora uma vez que você já tenha assumido, baseado em um erro ou falta de discriminação, que você é mesmo um ser inseguro e carente – o que de fato toda a personalidade, sempre relativa ao corpo e à mente, é e nunca deixará de ser.

Então, façamos agora finalmente a correção devida: Vedanta não é um meio de conhecimento para revelar a você mesmo a sua própria existência: uma tese tão absurda que mesmo o congresso brasileiro não a consideraria por mais de 10 segundos: “Pelos princípios mais elementares da lógica e pelo Danoninho das crianças, o meu voto é não, excelência.” Vedanta é um meio de conhecimento discriminativo para a natureza do eu apenas na medida em que nega todas as falsas conclusões de limitação centradas no eu, mas que de fato pertencem ao não-eu, deixando a auto-evidência eterna, plena e livre de quaisquer carências, libertada do seu dramático erro fundamental: a busca, sempre em alguma medida frustrada, por plenitude, grandeza, eternidade.

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