“Khelati mama hṛdaye rāmaḥ, khelati mama hṛdaye…”, essas são as simples, belas e profundas palavras de um mestre cantando do seu coração cheio, pleno. É um bhājan muito famoso na Índia, que diz: ” Rāma dança no meu coração, dança no meu coração…”
A letra prossegue, mas eu gostaria de ficar apenas com estas palavras: “Rāma dança no meu coração, dança no meu coração…”
Quem é Rāma? sarvāḥ ramanti tasmin saḥ rāmaḥ – Aquele no qual todos se alegram, se comprazem, se satisfazem é chamado Rāma.
Em que as pessoas se comprazem? Aparentemente, em diferentes coisas. Alguns se comprazem em andar em um carro esporte, outros em ter uma família, outros em cozinhar para os amigos, outros em estudar literatura inglesa. Certo? Errado. Todos se satisfazem apenas no encontro com o eu satisfeito, que emerge quando fazem estas atividades. Se, um dia, o sujeito cansar de estudar literatura inglesa, isso significa que a literatura não está mais sendo capaz de fazer brotar nele o eu satisfeito que antes emergia, portanto, ele larga o estudo.
- “Cansei” – diz o sujeito para a filho
- “Mas pai, o senhor adorava ler”
- “É, mas, sei lá… Perdeu a graça.”
Perder a graça significa perder Rāma, perder o contato com o eu satisfeito que é o que todos estamos buscando incessantemente através de todas as atividades que fazemos.
Rāma é também, não por acaso, o nome da encarnação de Ishvara, Deus, dentro da Tradição Védica. Cruzando as informações, concluímos que essa felicidade ou satisfação, essa plenitude que é Rāma, é a causa do universo!
Agora, algum aluno muito perspicaz perguntaria:
- “Professor, a causa de um efeito não permeia completamente efeito, assim como o barro permeia todo o pote?”
- “Sim.” – responde o professor.
- “E Rāma, a felicidade, é a causa do Universo?”
- “Sim.”
- “O que significa que o Universo é permeado de felicidade e não é nada além de felicidade”
- “Perfeitamente.”
- “Então o senhor, com todo o respeito, vá dizer isso para minha mãe, que está há três dias chorando na cama a morte do meu pai”.
Nesta questão, é claro, existe uma confusão sobre o que seja felicidade como a natureza básica de tudo. Dizemos felicidade ao que se manifesta na mente em diferentes graus, sempre que se alcança algo de desejável, ou mesmo sem nenhuma razão aparente. Como já vimos, contudo, a felicidade não está contida no objeto alcançado ou atividade realizada. Felicidade está contida no eu. Eu que sou feliz, às vezes com essa pessoa, aquele objeto, às vezes sem ninguém por perto. Como necessariamente deve estar este eu para que eu sinta felicidade? Ele deve estar livre da noção de que é carente ou inadequado. Mesmo que por um instante, se eu experimento felicidade, é porque nesse instante eu não julguei a mim mesmo como um ser carente, inadequado de alguma maneira.
Havia um sujeito que não ria, porque, de família muito humilde, não possuía alguns dentes da frente da boca. Os colegas de trabalho viviam contando piadas uns para os outros, e todos se riam menos ele. Quando a piada era realmente engraçada, ele quase abria um sorriso, logo reprimido pela lembrança de que não tinha os dentes, achando que, de algum modo, seria ridicularizado e se sentiria muito mal. A noção de limitação em qualquer nível, impede a descontração da felicidade. Mas um belo dia, um colega contou uma piada cujo desfecho era muito engraçado, muito bem arranjado e hilário. Não deu tempo do nosso amigo pensar em dentes, ele simplesmente abriu a boca e gargalhou como nunca, se comprazendo daquele momento. Só algum tempo depois lembrou da sua carência, sua falta de dentes, e fechou a boca. E não havia mais graça no ar.
Felicidade e noção de limitação são duas coisas que não andam juntas. Tanto menos eu me julgo incompleto ou carente, tanto mais a felicidade, que não vem de nenhum objeto mas está em mim, brilha na minha mente. No sono profundo, onde o autojulgamento é nulo, a felicidade, o bem-estar e conforto estão manifestos completamente – o que inferimos do fato de você ficar acrescentando mais 5 minutos no despertador por uma hora e meia.
Muitas vezes, é verdade, não sentimos felicidade, que parece ser substituída por outras emoções. Mas o fato é que, sem o sentimento básico de plenitude sempre esteja presente, transformado pela ignorância justamente em uma ânsia por plenitude, nenhuma emoção seria possível, seria experimentada.
Se a mãe do garoto chora e está triste pela morte do marido, isso se dá apenas porque o marido era querido por ela. Ela queria estar sempre em conexão com aquele homem. Ela o amava. O amor, a plenitude, nesse caso se manifesta como tristeza. Não é que a felicidade se foi e agora a tristeza está no comando, mas a própria felicidade é, naquele momento, expressada adequadamente como tristeza. Depois do luto, a tristeza vira saudade, e a saudade trás as lágrimas, boas lágrimas, que muitas vezes até queremos nutrir.
Khelati mama hṛdaye rāmaḥ, Rāma dança no coração do sábio, porque o sábio entende que a felicidade não sai de cena jamais, qualquer que seja a emoção apresentada. É tudo um belo e emocionante show de dança indiana. Na dança Indiana, que é também teatro, um ator faz muitos personagens, mudando de um para outro apenas pela mudança impressionante e rápida da expressão facial, cada uma mostrando uma emoção especifica. Então a princesa, doce e inocente, vira o demônio agressivo e mal, que vira o herói corajoso e gentil, que vira o rei, magnânimo e bom, que vira o conselheiro do rei, perverso e enganador.
O sábio é aquele que está sentado no camarote da própria mente, apreciando o espetáculo, a bela história contada pela dança das suas emoções, sabendo que quem dança é só Rāma, a felicidade. Ela não sai de cena. Se uma hora é alegria, dá um rodopio e vira raiva. Mas a raiva se resolve rapidamente na contemplação da natureza, e vira paz. No encontro com o bom amigo, vira amizade. Vendo uma mulher com dificuldades, na rua, pedindo dinheiro, Rāma dá mais um rodopio e vira compaixão. E vira tristeza. E vira até medo e raiva, em medida justa, por que não? Por acaso é possível ter raiva sem amor, sem alguma conexão muito básica, uma expectativa de ser compreendido e querido pelo outro. Não, não é.
Naturalmente, se Rāma dança no coração do sábio, parece pisotear rudemente no coração do ignorante. Por quê? Por que sofremos? Porque o amor, a felicidade não é vista como o ser de todas as emoções. Compreendemos o amor ou felicidade desde uma perspectiva muito limitada, como um sentimento particular que nasce do contato com um objeto, e que nos agrada em algum sentido, produzindo a efêmera alegria característica dos objetos.
Mas isso é um mal entendido apenas. É como um ignorante completo em música clássica ir a um grande concerto. Acho que o mundo jamais esquecerá do curioso episódio do “Concerto para Bangladesh”, organizado pelo Beatle George Harrison, nos Estados Unidos, em que Ravi Shankar e seus músicos apenas afinavam os instrumentos antes do show e receberam efusivos aplausos no final, com gente de pé, emocionada. Ravi imediatamente disse no microfone algo como: “Se vocês gostaram tanto da afinação, espero que gostem muito mais ainda da música”.
Para apreciar algo de algum ramo da arte, do conhecimento ou qualquer outra matéria, você deve conhecer um tanto sobre aquele assunto. Quem pode apreciar realmente o que é física quântica, a beleza das suas equações? Se você não sabe nada das minúcias da arte da pintura e da sua história, um quadro de Van Gogh não será apreciado como poderia ser. Você pode não ver a beleza ali, naquelas pinceladas muito peculiares do artista holandês, e achar aquilo horroroso, meio enjoativo. Mas há uma grande beleza a ser apreciada ali.
A dança de Rāma, do amor, da felicidade que é a natureza de tudo, só vai parecer uma bela arte no nosso coração se compreendermos o que estamos vendo ali. Se julgarmos as emoções achando que elas são inadequadas ou más, achando que somos bons ou maus, melhores ou piores, mais ou menos felizes e completos de acordo com as emoções que a mente a cada momento nos apresenta, então, é claro, a fina dança parecerá um pisoteamento cruel de índios se preparando para guerra. Você sentirá a dor de estômago, inclusive.
A dança de Rāma, apesar de estar acontecendo neste exato momento nos nossos corações, com toda a técnica e perfeição do grande Artista, só vai ser apreciada relaxadamente como uma bela arte quando entendermos que o jogo das emoções não tira de cena a felicidade básica que é a natureza dessas próprias emoções. Quando, por algum momento, achamos que perdemos a felicidade pela presença de alguma emoção “negativa”, então deixamos o relaxamento do espectador e estragamos tudo, querendo mudar a dança ou cancelar o show. Somos então como uma criança achando que o sol não veio em um dia nublado:
- “O sol não está aqui, mamãe!” – diz a criança, olhando para cima.
- “Está sim, meu filho”, responde a mãe. “E só porque ele está lá, brilhando como sempre, que as nuvens podem brilhar para você também”.