Uma dúvida frequente dos alunos de Vedanta, quando começam a se aprofundar no estudo, é sobre a natureza da liberação, moksha, na forma do conhecimento claro de que “Eu sou o Todo”. Mais precisamente, a dúvida pode ser assim resumida: “Quando conhecemos nossa natureza livre de limitação, ficamos o tempo todo conscientes de que somos o Todo, de que somos livres de todas as limitações da individualidade e de que não há nada que não seja eu? Ficamos o tempo todo conscientes de um sentimento de plenitude?”
É uma pergunta interessante e, para respondê-la, precisamos entender o que significa ter conhecimento de algo. A pergunta que precisamos responder é: Qual a relação entre ter um conhecimento e estar explicitamente consciente dele?
Suponha que você esteja escrevendo um texto, ou lendo um, como agora. Você está explicitamente consciente do ato de estar lendo, mas não está explicitamente consciente do seu nome, por exemplo, ainda que você saiba como se chama. Em outras palavras, existe um conhecimento explícito e um implícito. O conhecimento de que “Eu me chamo Fulano” não está explícito e, no entanto, você o possui, tanto que se alguém, agora, lhe chamar pelo nome, você imediatamente responderá. Você se tornará explicitamente consciente do conhecimento de ser o Fulano, de ter tal nome.
A mente só pode estar explicitamente consciente de uma coisa de cada vez. Isso não significa que você não possa cozinhar e conversar com uma pessoa ao mesmo tempo, mas uma das ações será explícita, deliberada, e a outra ficará implícita, subentendida, automática. Se você tem experiência em descascar batatas, você conseguirá descascá-las sem estar explicitamente consciente desta ação, e poderá conversar deliberadamente, estando explicitamente consciente apenas da ação de conversar. Ao contrário, se você não tem habilidade em descascar batatas, provavelmente você não conseguirá conversar com alguém ao mesmo tempo, porque sua mente precisará ficar explicitamente consciente do ato de descascar, impedindo que a atenção esteja presente na conversa.
Este mecanismo é bem evidente quando alguém aprende a dirigir. No começo o motorista novato não pode fazer nada além de prestar atenção nos pedais, na troca de marcha, freio, etc. Ela não consegue nem prestar atenção no rádio, muito menos conversar com alguém ou deixar a mente divagar livremente em outros assuntos. Quando, porém, o ato de dirigir torna-se assimilado, a mente consegue ficar implicitamente consciente de estar dirigindo e explicitamente consciente de outras coisas, como conversar com o passageiro ao lado.
No momento do autoconhecimento ou da contemplação sobre o autoconhecimento uma pessoa fica explicitamente consciente do fato de ser Brahman, o todo, e não há, ao mesmo tempo, a consciência explicita do mundo, da dualidade, da realidade empírica de ser um indivíduo, dos problemas a serem resolvidos, etc. Nesse caso, a pessoa de fato experimenta um sentimento de felicidade ou plenitude, porque sua mente está predominantemente sattva, claramente consciente da sua identidade real e de que ela não tem absolutamente nada a ganhar ou perder.
Quando essa pessoa sai da contemplação – do ato de estar explicitamente consciente do fato de ser o todo – a consciência explícita de ser um indivíduo fazendo coisas no mundo retorna e, consequentemente, o conhecimento de que “Eu sou o Brahman” torna-se implícito. Ele continua ali, potencialmente disponível e acessível, mas a pessoa não está explicitamente consciente dele. Então, ela experimenta todas as coisas da mesma maneira que uma pessoa ignorante experimenta, de acordo com a predominância de sattva, rajas ou tamas na sua mente.
Se a mente do sábio tornar-se predominantemente sattva, escutando uma música que gosta, por exemplo, ele experimentará alegria como uma pessoa qualquer. Se sua mente tornar-se predominantemente rajas, engajada em várias atividades, ele poderá experimentar todas as emoções como raiva, apreensão, decepção, etc. Se predominar tamas (depois de comer demais no almoço, por exemplo), ele ficará indolente, lerdo, apático, sonolento, etc. Não pergunte nada sobre Vedanta para ele nessa hora!
O que distingue o sábio do não-sábio, portanto, não é o fato de ele estar explicitamente consciente da sua identidade real como Brahman o tempo todo, permanentemente mergulhado em uma sensação de felicidade ou plenitude, o que até mesmo inviabilizaria qualquer troca empírica com o mundo. O sábio tem a liberação porque possui o conhecimento – não necessariamente explícito – de que a individualidade e o mundo são falsos, são um blefe, e de que o significado real da palavra “eu” é algo completamente livre de todos os problemas inerentes à individualidade.
Quando o sábio quiser ele pode voltar sua mente explicitamente para o fato de que é livre, atenuando quaisquer sofrimentos que porventura o mundo pareça estar lhe causando. Com o tempo, quanto mais o conhecimento acerca da desse fato esteja claro, menos a pessoa que possui o autoconhecimento precisa engajar-se para ficar explicitamente consciente dele, vivendo naturalmente o que o seu destino, prarabdha-karma, lhe reserva, assim como um ator pode estar explicitamente consciente do script que seu personagem deve seguir na peça em que ele atua sem a pressão ou necessidade de ter que se lembrar do conhecimento (existente mas implícito na hora da atuação) de que ele é completamente livre dos problemas do personagem.
Uma resposta em “A Consciência da Liberação”
Muito bom este texto! Gracias!