O famoso mantra “pūrṇamadaḥ…” ocorre na parte final do Śukla Yajurveda, onde estão a Iśa-upaniṣad e a Bṛhadāraṇyaka-upaniṣad, dois dos mais importantes textos de Vedānta. Alguém disse que, se todo o Veda fosse perdido e restasse apenas esse mantra, nada seria perdido.
Ao mesmo tempo, o jogo de palavras feito com um único substantivo – pūrṇa, que significa pleno – dá ao verso um ar de mera parlenda infantil. Diz o mantra:
पूर्णमदः पूर्णमिदं पूर्णात् पूर्णमुदच्यते ।
पूर्णस्य पूर्णमादाय पूर्णमेवावशिष्यते ॥pūrṇamadaḥ pūrṇamidaṃ pūrṇāt pūrṇamudacyate ।
pūrṇasya pūrṇamādāya pūrṇamevāvaśiṣyate ॥“Aquilo é pleno. Isto é pleno. Do pleno vem o pleno. Tirando o pleno do pleno ou acrescentando o pleno ao pleno, apenas o pleno permanece.”
Tendo em mente de que o Veda é um meio confiável de conhecimento, devemos inquirir sobre o significado profundo disso que parece apenas um jogo de palavras.
Dois pronomes ocorrem no mantra: adaḥ e idam, aquilo e isto. Idam, isto, se refere a tudo aquilo que pode ser objetificado, tudo que alguém pode apontar e dizer: “isto”. Em outras palavras, o pronome idam se refere a tudo aquilo que está próximo, não distante em termos de tempo espaço e conhecimento.
Algo pode estar presente espacialmente, mas distante em termos de tempo, como uma pimenta, por exemplo. Se você planta na terra a semente de uma deliciosa pimenta Jalapeño, a pimenta está, espacialmente falando, ali mesmo, já naquela terra. Contudo, ela ainda é uma semente, o que significa que, em termos de tempo, ela ainda está “distante”. É preciso esperar algumas semanas para que a semente brote e cresça em um arbusto cheio de frutos. A pimenta, então, estará ali, imediatamente disponível, e você poderá objetifica-la: “Esta pimenta”.
Entretanto, ainda que uma coisa esteja imediatamente disponível para objetificação em termos de tempo e espaço, ela poderá continuar “distante” em termos de conhecimento. Se você cobrir o arbusto de pimenta com uma lona, a pimenta não poderá ser objetificada. É preciso que aquilo que encobre o objeto – seja uma lona física, seja uma lona mental de ignorância – seja retirado.
Como tudo e qualquer coisa pode se tornar um objeto do seu conhecimento caso as distâncias de espaço, tempo e ignorância sejam ultrapassadas, todo o universo, físico e sutil, é tradicionalmente referido pela palavra isto, idam. O Veda não se cansa de dizer, “idam sarvam – tudo isto”, para se referir ao mundo inteiro.
O mundo inteiro e todas as coisas nele, passíveis de se tornarem objetos do conhecimento de uma pessoa, é pleno, pūrṇam-idam, diz o mantra. Ao que tudo indica, essa não é uma afirmação sensata. O mundo não é pleno, muito menos algum objeto nele. Todas as coisas estão se transformando, morrendo. O próprio universo está, todos os sóis e galáxias. O que dizer do meu carro, do meu corpo, da minha fortuna? O que há de pūrṇam nessas coisas?
Mas não só idam, isto, é pūrṇam. Adaḥ, aquilo, também é pūrṇam, pūrṇamadaḥ. Se idam significa tudo aquilo passível de se tornar um objeto do meu conhecimento, incluindo o meu mundo interno de pensamentos e emoções, o que sobra para ser o significado da palavra “aquilo”? A única “coisa” que sobra é o conhecedor, aquilo que nunca se torna um objeto de conhecimento.
O sujeito, ātmā, não se torna jamais um objeto, pois, para isso, seria preciso que outro sujeito o objetificasse, tornando o suposto sujeito apenas mais um objeto. Assim, adaḥ, aquilo, é, em oposição a idam, algo que está sempre remoto, distante, significando aquilo que não se torna em nenhum tempo e lugar algo conhecido como idam, como um “isto”. Este algo só pode ser o sujeito, eu mesmo.
Este sujeito que eu mesmo sou é pūrṇam, “pūrṇamadaḥ”, diz o mantra. Ainda que eu me considere tão insignificante como todos os objetos do mundo (justamente porque considero a mim mesmo, erroneamente, como objetos, i.e. o corpo e a mente), a afirmação de que eu sou pleno pode ser mais facilmente entendida do que a afirmação de os objetos são plenos. Porque eu, o sujeito, não podendo ser objetificado, não tenho forma. Forma significa algo disponível para algum tipo de objetificação, necessariamente. O sujeito, sendo aquilo que é livre de objetificação, é automaticamente livre de forma. Sendo livre de forma, eu não tenho limite. Nenhum contorno de formas me limita, ao contrário de uma laranja, por exemplo, cujo contorno do volume esférico a limita de todos os outros objetos do universo, fazendo-a insignificante, apūrṇam.
O sujeito livre de formas, livre de limitação, é pūrṇam – isso parece entendido. Mas só parece: o que dizer dos objetos, do mundo inteiro referido como idam e que é oposto ao sujeito, adaḥ? Por acaso o idaṃ jagat, este mundo, não é uma limitação para o sujeito, sendo diferente dele? Surpreendentemente, não!
O nosso hábito é considerar o mundo inteiro uma limitação para nós, e nesse mundo opressor estão incluídas as minhas próprias emoções. Eu me considero bom e adequado apenas quando as emoções e pensamentos que considero bons e adequados estão presentes. Qualquer ameaça de raiva, tristeza ou frustração é altamente indesejável, tanto que muitas pessoas consideram a ausência de pensamentos algo desejável. Existe até tradições de yoga que ensinam que a meta final da espiritualidade é a ausência de pensamentos, citta-vṛtti-nirodha. As pessoas fazem meditação, tomam remédios, dormem, tornam-se viciadas em diversas atividades e diversões apenas com o intuito de se verem livres das emoções e pensamentos que as atormentam. Que eu seja pūrṇam, que o mundo inteiro seja pūrṇam: os meus pensamentos, definitivamente, não são!
Não é isso, entretanto, que o mantra revela. Você é pūrṇam e o mundo, que inclui sua mente “defeituosa”, também é. Mas, por acaso, podem existir dois plenos: idaṃ pūrṇam e adaḥ pūrṇam? Obviamente, não. “Aquilo é pleno e isto é pleno” significa apenas que a suposta separação entre sujeito e objeto é falsa, e que ambos são um único todo.
Para explicar a suposta relação entre essas duas coisas, adaḥ e idam, o mantra prossegue dizendo: “pūrṇāt pūrṇam-udacyate, do pleno o pleno surge”. Essa afirmação, que parece saída da boca do Mestre dos Magos ou algo do tipo, é altamente significativa. Pūrṇāt, “do pleno”, significa daquele pleno que é adaḥ e que é o sujeito, a consciência que é a natureza do conhecedor. Do pleno que é a consciência livre de forma e livre de limitação, pūrṇam-udacyate, o pleno que é idam, o universo inteiro, surge. É, assim, estabelecida uma relação de causa e efeito entre a consciência que eu sou e o universo que eu objetifico.
Quando falamos em causa e efeito naturalmente imaginamos o efeito saindo da causa como algo distinto dela. Mas, se antes só existia a causa e nada mais, qualquer coisa que chamemos de efeito ou criação só pode ser a causa mesma, ainda que chamada de outro nome. Por exemplo, antes temos uma massa de argila. Da argila, surge o pote. Se o pote surge da argila, então o pote inteiro é argila. O peso do pote é o peso da argila, a textura do pote é a textura da argila, o cheiro do pote é o cheiro da argila, a forma do pote é a forma da argila. Tudo, enfim, é da argila e nada é do pote, porque não existe pote independente da argila. Pote é só um nome na boca de quem o pronuncia, um conceito na mente de quem o vê. De fato, existe apenas argila.
Da argila vem a argila: é assim que alguém que “abriu o olho do conhecimento” fala sobre a criação do pote. Da mesma forma, da consciência plena, livre de limitação, vem o mundo inteiro, que não é senão a mesma consciência plena, livre de limitação. O mundo não é uma adição para a consciência. Olhe para o computador na sua frente. Você pode dizer, “Computador existe”. Mas o computador não existe por ele mesmo; não é ele que revela sua existência. A frase, “Computador existe” pode muito bem ser melhor explicitada pela frase, “Consciência de computador existe”. Temos então duas coisas, consciência e computador? Se sim, então tire a consciência. O que sobra do computador? Para todos os efeitos, nada! Agora tire o computador, o que resta da consciência? Tudo! Resta a consciência inteira, quer seja na forma de consciência do mundo ou consciência de ausência do mundo, se você estiver dormindo.
Isso significa que a relação entre consciência e mundo, adaḥ e idam, é a relação entre o real e o aparente, assim como a relação entre o barro e o pote. Eu sou pleno, pūrṇam, livre do mundo ou na presença do mundo, porque o mundo não é algo separado de mim para me ameaçar. O mundo sou eu, é a minha própria plenitude manifesta.
A última parte do mantra diz, “pūrṇasya pūrṇamādāya pūrṇamevāvaśiṣyate, adicionando o pleno ao pleno, ou tirando o pleno do pleno, apenas o pleno permanece”. Podemos entender agora como essa afirmação não é mesmo uma simples brincadeira com as palavras. Quer o mundo inteiro apareça na minha experiência com toda a sua aparente limitação, quer ele seja completamente removido junto com a minha mente e emoções, eu mesmo não ganho nem perco porque, do meu próprio ponto de vista, nada acontece.
Pergunte ao barro se ele ficará triste se o pote for dele removido:
- Que pote? – retrucará o barro.
- Esse, que está em você?
- Em mim? Onde?
- Aqui – você diz, tocando o barro.
- Ei, não faça me cócegas! Eu sou sensível ao toque. Mas, afinal, de que diabo de pote você está falando? Acho que seria bom você consultar um especialista… Pronto, falei.
Assim, o mantra “pūrṇamadaḥ…” revela a plenitude que você é, sempre foi e sempre será, independente de quaisquer condições, da ausência ou presença de objetos ou pessoas. O sábio que conhece o significado desse mantra é do seguinte modo descrito pelo Senhor Kṛṣṇa, na Gītā:
ज्ञेयः सनित्यसन्न्यासी यो न द्वेष्टि न काङ्क्षति ।
निर्द्वन्द्वो हि महाबाहो सुखम् बन्धात् प्रमुच्यते ॥jñeyaḥ sanityasannyāsī yo na dveṣṭi na kāṅkṣati ।
nirdvandvo hi mahābāho sukham bandhāt pramucyate ॥“Ó Grande Guerreiro (Arjuna), conheça como sendo sempre um renunciante aquela pessoa que não anseia nem odeia coisa alguma. Aquele que é livre da dualidade é, sem qualquer esforço, libertado do aprisionamento.”
8 respostas em “O Significado do Pūrṇamadaḥ”
Agradecendo pela sua clareza em todos os artigos!
Meu Deus! Que artigo incrível. Detalhadamente claro! gratidão professor.
Adoro esse mantra. Agora mais ainda. Já tinha intuído o significado. Com esses esclarecimentos ficou melhor. Agradeço de coração! Namaste.
Muito bom.
Física quântica.
Adorei a clareza da explicação! Gratidão! Hari Om
Que maravilha de explicação.
Grato!
Amigo, Lu, seus textos são um primor – estou aos poucos desfrutando da leitura, sem pressa. Este artigo está divino – purna, harih om 🙂 Abraço fraterno e gratidão pela palavra.
Encantada, e muito feliz por esse belo ensinamento 🙏🌷 Gratidão 💜